Em viagem no tempo, Fasc reafirma conexões entre cultura e democracia
Um olhar pessoal e político sobre o Festival de Artes de São Cristóvão Variedades | Por Ana Luísa Andrade 06/12/2022 07h00 - Atualizado em 06/12/2022 08h36 |Quem chega ao Centro Histórico de São Cristóvão, Cidade Mãe de Sergipe, logo se depara com um cenário que parece ter sido tirado de uma novela de época. Construções antigas e imponentes, ruas cobertas por paralelepípedos, casas pintadas em cores e tons vibrantes, que fogem do padrão cinzento da arquitetura atual.
Ouso dizer que é como se transportar para um mundo à parte após passar pelos urbanizados Rosa Elze e Eduardo Gomes - bairros com os quais tenho mais contato, por conta da maior proximidade com a Universidade Federal de Sergipe e da capital sergipana. É como viajar no tempo, assim como viver o Festival de Artes de São Cristóvão.
Criado há 50 anos, o festival nasceu no momento político mais triste e tenebroso da história do nosso país. Durante a ditadura militar, que durou entre os anos de 1964 e 1985, o Brasil foi vitimado pela morte da nossa democracia. Como resposta a toda a opressão e violência do Estado e das Forças Armadas, à época, a resistência veio de diversas formas, inclusive e sobretudo por meio de manifestações culturais.
É preciso estar atento e forte. Acredito que quando Caetano Veloso escreveu a letra e Gilberto Gil compôs a melodia de “Divino Maravilhoso”, em 1969, eles não imaginavam que a canção continuaria fazendo tanto sentido após 53 anos. Eternizada na voz da também eterna Gal Costa - que, inclusive, estaria cantando nesta edição do Festival de Artes -, a composição deixa clara a necessidade de resistir em contextos de regimes repressivos e autoritários.
Mais de um mês após o resultado das eleições presidenciais de 2022, manifestantes inconformados pedem uma intervenção militar e o Fasc continua sendo resistência contra essas renovadas ameaças à nossa democracia, protagonizado por antigas e novas vozes e manifestações compostas por pessoas que fazem parte de diversas minorias sociais, cujas existências por si só já são resistência.
Durante a última noite do festival, neste domingo (4), Emicida levou boa parte do público às lágrimas - incluindo esta que vos escreve - ao cantar “AmarElo”. Dando nova vida aos versos principais de “Sujeito de Sorte”, música escrita por Belchior em 1976 - ainda em um contexto de ditadura -, o cantor, rapper, escritor e pensador contemporâneo paulista disse, durante o show, que a canção nunca fez tanto sentido quanto faz agora. Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.
Fotos: Ana Luísa Andrade/F5 News
Não posso deixar de mencionar os cortejos que desfilaram pelas ruas da Cidade Mãe e as exposições de arte, que resistem a um sistema que tenta, de diversas formas, oprimir as manifestações culturais de um povo que já é oprimido de outras diversas formas.
O que eu consigo relatar por meio dessas palavras não é nem 1% do que realmente é viver os quatro dias de Festival de Artes de São Cristóvão. Seja pelas calçadas e meios-fios que nos acolhem nos momentos de cansaço ou pelas doses de pisa macio que nos aquecem nas noites de chuva, a Cidade Mãe de Sergipe faz jus ao seu nome e acolhe gente dos mais diversos tipos. E nada se iguala a isso.
Mesmo com o desafio de usar o banheiro químico em uma ladeira e com os pés cheios de calos e doloridos de andar pela cidade de um lado para o outro, em uma tentativa de perder o mínimo possível dessa viagem no tempo, os sentimentos que ficam são de gratidão, saudades e, principalmente, de esperança.
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